Autora: Ana Cristina de Sousa Veras. (Como citar: SousaVeras A.C.)
A preocupação com a crescente sofisticação da Inteligência Artificial (IA) não se limita a questionar apenas a distribuição de tarefas no mercado laboral; ela lança uma sombra inquietante sobre a própria estrutura da identidade humana, o significado do trabalho e sentido intrínseco que encontramos para a vida. A premissa central de que o trabalho para os humanos transcende a mera função económica, constituindo-se em um “nexos de sublimação, expressão da personalidade, significação e sentido da vida humana”, como pertinentemente articulado¹, ressoa com profundidade diante da ascensão de sistemas algorítmicos capazes de replicar e, em alguns casos, superar a atuação humana em diversas atividades. Este ensaio crítico propõe uma análise das implicações dessa ameaça existencial, explorando como a potencial desarticulação do trabalho humano pela IA pode desestabilizar os pilares da nossa identidade e erodir as fontes de significado que sustentam a experiência humana.
A perspetiva psicanalítica da sublimação¹, habilmente entrelaçada com as teorias da psicologia do trabalho, da sociologia e da psicologia existencial, ilumina a complexa relação entre o fazer laboral e o desenvolvimento psíquico. Freud ofereceu uma lente para compreender como a atividade produtiva pode ser uma forma de elaboração interna e de adaptação à realidade¹. A psicologia do trabalho expande essa visão, demonstrando como um trabalho enriquecedor, dotado de autonomia e significado intrínseco, nutre a motivação e a satisfação individual, facilitando a sublimação e atendendo às necessidades psicológicas de competência e relação, conforme a teoria da autodeterminação de Deci e Ryan².
No entanto, a ascensão da IA introduz uma fratura nesse sistema. Se tarefas que antes exigiam a aplicação de habilidades, a resolução de problemas e a interação social – elementos cruciais para o desenvolvimento da competência e a construção de relações no ambiente de trabalho – são progressivamente automatizadas, então, onde residirá o espaço para a sublimação e a satisfação dessas necessidades intrínsecas? A ameaça da IA não é apenas a perda de um “emprego” no sentido estrito, mas sim a privação de um contexto fundamental para o exercício e o reconhecimento das capacidades individuais, elementos essenciais na construção de uma identidade profissional e pessoal robusta.
A sociologia do trabalho, com a sua ênfase no papel das estruturas sociais na moldagem da experiência laboral, adverte sobre os perigos da crescente fluidez e precarização, como diagnosticado por Bauman³. Pois, a IA, ao intensificar a automação e potencialmente gerar um cenário de desemprego estrutural, pode exacerbar essa instabilidade identitária. Enquanto a identidade profissional, construída em grande medida através da identificação com grupos ocupacionais, torna-se frágil quando esses grupos são dizimados pela eficiência algorítmica.
A pergunta que emerge é: como construir um senso de “nós” profissional quando a própria base do trabalho compartilhado é erodida pela máquina?
Na perspetiva existencial de Frankl ressoa com particular urgência nesse contexto. A busca por um propósito, a necessidade de sentir que a própria existência contribui para algo maior, encontra no trabalho um terreno fértil para florescer. Quando o trabalho é percebido como uma mera execução de tarefas desprovidas de significado intrínseco, ou quando é substituído por sistemas automatizados que não oferecem nenhuma oportunidade de contribuição pessoal, o indivíduo pode confrontar um vazio existencial profundo. A IA, ao desumanizar certos processos produtivos e ao retirar a agência humana de determinadas atividades, pode privar os indivíduos de uma das principais vias para encontrar sentido na vida.
Portanto, é assertivo descrever o trabalho como um espaço dinâmico onde confluem múltiplos processos psicológicos e sociais interconectados”¹, nessa perspetiva a ameaça da IA reside precisamente na sua capacidade de desarticular essa complexa interconexão. Se o trabalho se torna cada vez mais automatizado e desprovido de oportunidades para o desenvolvimento de competências genuinamente humanas, para a interação social significativa e para a perceção de um impacto pessoal, o potencial do trabalho como motor de bem-estar psicológico e de coesão social diminui drasticamente.
Ainda, a constatação de que “nem todas as formas de trabalho proporcionam essas oportunidades enriquecedoras”¹ ganha uma nova camada de urgência diante da ascensão da IA. Se trabalhos alienantes e exploratórios já representavam um obstáculo à sublimação e à realização pessoal, a perspetiva de serem substituídos por máquinas pode gerar não apenas insegurança económica, mas também uma profunda sensação de inutilidade e de desvalorização da própria existência.
Em suma, a ameaça da IA ao trabalho humano transcende a mera questão do emprego; ela atinge o cerne da nossa identidade e do nosso sentido de vida. Ao desestruturar potencialmente o “nexos de sublimação, expressão da personalidade, significação e sentido da vida humana” que o trabalho representa¹, a IA nos confronta com a necessidade urgente de repensar o papel do trabalho na sociedade e de identificar novas formas de construir identidade, encontrar propósito e fomentar o bem-estar psicológico num futuro cada vez mais automatizado.
A preservação da saúde mental individual e da harmonia social dependerá da nossa capacidade de reconhecer a profundidade dessa ameaça e de articular respostas criativas e humanistas que valorizem as capacidades intrinsecamente humanas para além da mera eficiência algorítmica. A questão crucial não é apenas o que faremos para sobreviver economicamente, mas sim como manteremos viva a nossa humanidade e profissionalismo num mundo onde o trabalho, como o conhecemos, está numa disruptiva transformação.
Referências Bibliográficas
1. Freud S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago; 1930.
2. Deci EL, Ryan RM. Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation, social development, and well-being. Am Psychol. 2000;55(1):68-78.1 Disponível em:1.books.google.com
3. Bauman Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2001.
4. Frankl VE. Em Busca de Sentido: Um Psicólogo no Campo de Concentração. São Paulo: Editora Vozes; 1984.
Uso da IA Gemini: melhoria do texto e criação da imagem.

